O
menino, o pai, o doutor e a bola
Sonhava
ser jogador de futebol. E, nada novo para quem ali frequentava,
estava entre os que mais se destacavam. Toque fácil, molejo,
malandragem e habilidade foras de série enchiam os olhos até mesmo
dos meninos maiores que, demorou nada, o chamaram para integrar o
time dos grandões no treino mais duro dos domingos pela manhã.
Começou a chamar a atenção de gente séria que lidava com o
esporte e vinha observar a molecada na busca por um possível
novo Neymar. Foram conversar com o pai. O pai já havia tentado,
tempos atrás, a vida na carreira futebolística, não vingou,
tornou-se ginecologista, e queria o menino doutor. Mandou o menino
pro quarto, dispensou a galera da bola e foi ter com o filho mais
tarde. O pai era um grande espelho pro filho, e o filho, apesar da
grande paixão pelo esporte, nutria uma ainda maior pelo pai. O pai
não titubeou, foi enfático, contundente. Mesmo sabendo de uma maior
afinidade do menino com o futebol, foi firme em seus argumentos,
falando do curto tempo de vida útil de um jogador e também das
reais possibilidades do "dar certo" em cada uma das
empreitadas, ainda mais considerando a já tão grande proximidade
com a profissão de médico, o poder aquisitivo para os estudos -
algo que muita gente que sonhava com a área não tinha e que ele, o
filho, deveria agradecer muito por ter - os contatos e,
principalmente, o status social intelectualmente tão acima. O filho
não fez um teste sequer, não foi mais aos treinos, largou a bola e
embrenhou-se nos cadernos de medicina. Como jogador eu não soube, e,
aos poucos, ninguém mais pensou nisso também. Como doutor, se saiu
bem, o menino. Nada de fenomenal, um profissional do setor público
que cumpre seus horários regularmente, só às vezes deixando um ou
outro paciente na mão por algum mau humor proveniente de não sei
onde ou o quê. Nota-se também, em intervalos ou mesmo durante
alguma cirurgia, grande dispersão de sua atenção e uma tristeza no
semblante. Considerando seu status, sua condição financeira,
estabilidade e tamanha paixão pelo ofício, não vejo motivo pra
tanto. Alguns dizem que, olhando um pouco mais atentamente ali pro
fundinho de seus olhos, percebe-se ainda um menino correndo pelos
imensos gramados da vida, uma outra vida, com um imenso brilho no
olhar.
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