segunda-feira, 28 de julho de 2014

Um poema

num dia, um deus
no outro, um bosta
carniça no esgoto do cérebro e coração de menino

um menino, um velho, uma moça bonita
num dia está mal
concebe o ser inacabado como algo de bom
no outro, tem medo do bom

um espasmo, um orgasmo
gorfada devolve os espectros
que somos
e
agregamos
ao gosto da vida
ao orgulho do espaço vazio que contém tudo aquilo que sendo não foi e nos deixa
permite algo mais
e mais
todos nós num hospício cristão, espiritualista
todos nós numa merda e delícia de peça tal qual bem ou mal encenada
tal qual peça alguma inventada

um orgasmo e outro cheiro de amor
e de fome
disforme
a falsa insatisfação
do ser que não somos
e deixamos tentar-nos de novo

impreciso sucesso
fugaz, melodramático, um drama, um poeta
torto e inacabado
as avessas do ocaso
e sempre um acaso
brincar de palavras
desculpa poética
brincar de palavras...

um gesto são e vão
do poeta dos sonhos que vão
uma peça, invenção, alegria e tristeza
do poeta dos sonhos que vão

um poema.

Ácido lático

uma overdose de riso
uma overdose de orgasmo
uma overdose de ácido
uma overdose de álcool
uma overdose de lágrima
eu sou o ácido lático

sou o que já deu, limite
e que, por isso, estabeleceu-se
eu sou o que se mantém
pelo seu próprio ser
(ácido lático, ácido lático)

eu sou o que aconteceu
tudo o que vem a ser
o choro bêbado
nas mãos do amigo bêbado
no instante em que ninguém mais vê
ninguém mais
se aguenta

as meninas vão-se embora
cachaça finge findar
o professor de esportes explica
o ácido lático, o ácido lático

e eu, só, no fim da noite só
ouço a ressonância:

ácido lático ácido lático...

Da cidade

o ouro, as vestes várias
da favela
que é meu mundo

transmutado em cocaína
nas todas paixões de carnaval
chuvas de verão
não mais.

passo a compor as cores a oferecer-se
num instante-melodia outra:
como muda a minha cara na cidade de São Paulo

a modernidade se mescla, a modernidade propriamente dita
se recicla
pelos meus tristes papéis sem tinta
tão presentes, ausentes de cor
a pintar-me um novo sete de setembro
novos números, meu show

aonde vai, como é que fica
por onde anda, Professor?
cura estranha...

nas filas inexistentes de hospitais
na falta de existir
o aborto
da morte.
uma pausa em semifusa no silêncio
e a volta daquele que não foi
não o deixaram ir

um filme em meu cérebro
imagens obtidas pela fotografia do olhar
em todo lugar
como muda a minha cara no espelho do elevador
da cidade de São Paulo.